segunda-feira, 26 de abril de 2010

Reforma Passos ou como mudar a face e esquecer o traseiro

No início do século XX, o Rio de Janeiro enfrentava graves problemas sociais, decorrentes, em larga medida, de seu crescimento rápido e desordenado.

 
Ao final do século XIX, com o declínio do trabalho escravo, a cidade passara a receber grandes contingentes de imigrantes europeus e de ex-escravos, atraídos pelas oportunidades que ali se abriam ao trabalho assalariado. É importante entender que a cidade já contava com uma grande população de escravos, escravos libertos e população de várias cores  e origens, livre e pobre, desempenhando as mais variadas profissões pelas ruas da cidade. Ao contingente já existente acrescentou-se a massa de pessoas que resultou do êxodo de escravos libertos das fazendas, que viram na cidade um modo de vida diferente daquele que haviam vivido até então. Por esta e outras razões,  entre 1872 e 1890, a população da cidade do Rio de Janeiro duplicou, passando de 274 mil para 522 mil habitantes.

 
O incremento populacional e, particularmente, o aumento da pobreza agravaram a crise habitacional, traço constante da vida urbana no Rio desde meados do século XIX. O epicentro dessa crise era ainda, e cada vez mais, o miolo do Rio – a Cidade Velha e suas adjacências – , onde se multiplicavam as habitações coletivas e onde eclodiam as violentas epidemias de febre amarela, varíola, cólera-morbo que conferiam à cidade fama internacional de porto sujo. As habitações coletivas, os chamados cortiços, eram tidos como grandes focos de problemas de higiene, entendendo esse conceito não apenas como condições precárias de saúde, mas também de dissolução moral. Em cortiços escravos de ganho e pessoas livres conviviam normalmente em condições precárias, freqüentemente sem acesso à agüa limpa, sem ventilação, latrinas suficientes e limpas, entre outros problemas.

 
Não por acaso, os higienistas foram os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele "organismo" doente.

 
O primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro foi elaborado entre duas epidemias muito violentas (1873 e 1876), mas uma ação concreta nesse sentido levaria cerca de três décadas para se realizar. Foi a estabilidade político-econômica, a duras penas alcançada no governo Campos Sales (1898-1902), que permitiu ao seu sucessor, Rodrigues Alves, promover, entre 1903 e 1906, o ambicioso programa de renovação urbana da capital. Tratada como questão nacional, a reforma urbana sustentou-se no tripé saneamento – abertura de ruas – embelezamento, tendo por finalidade última atrair capitais estrangeiros para o país. Era preciso sanear a cidade e, para isso, as ruas deveriam ser necessariamente mais largas, criando condições para arejar, ventilar e iluminar melhor os prédios. Ruas mais largas estimulariam igualmente a adoção de um padrão arquitetônico mais digno de uma cidade-capital.

 
A reforma tinha inspiração no higienismo francês e pressupunha tanto o controle das condições sanitárias pelo controle do espaço público, como também o melhor manejo das populações, isto é, conter manifestações populares como as experimentadas nas comunas francesas e em pequenas revoltas populares no Brasil. A abordagem sanitária ainda se apoiava na teoria dos miasmas, isto é, na transmissão de doenças por ares infectos e não por agentes patogênicos e portanto o traçado das ruas e avenidas deveria priorizar grandes corredores de ventilação, incluindo também o desmonte de elementos topográficos, como o Morro do Castelo, que impusessem restrições à circulação de ar pela cidade.

 
As obras de maior vulto - a modernização do porto, a abertura das avenidas Central e do Mangue – e o saneamento foram assumidas pelo governo federal. A demolição do casario do centro antigo, a abertura e o alargamento de diversas ruas e o embelezamento de logradouros públicos foram atribuídos à prefeitura da capital.

 
Apoiada nas idéias de civilização, beleza e regeneração física e moral, a reforma promoveu uma intensa valorização do solo urbano da área central, atingindo como um cataclisma a população de baixa renda que ali se concentrava. Cerca de 1.600 velhos prédios residenciais foram demolidos. Parte considerável da imensa massa atingida pela remodelação permaneceria no centro, em seus arredores, pois, apesar do rápido crescimento da zona norte e dos subúrbios, essas áreas não constituíam alternativa de moradia para os que sobreviviam de biscates ou recebiam diárias irrisórias. Serviam apenas aos que possuíam remuneração estável e suficiente para as despesas de transporte, aquisição de terreno, construção ou aluguel de uma casa. Assim, os subúrbios não correspondem ao deslocamento de parcelas realmente miseráveis da população, mas daquela que tinha condições de se estabelecer, restando a esta parte mais vulnerável da massa deslocada as encostas de morros próximos à cidade em processo de remodelação.

 
Nesse contexto surge no Rio, ao lado das tradicionais habitações coletivas que se disseminaram nas áreas adjacentes ao centro (Saúde, Gamboa e Cidade Nova), uma nova modalidade de habitação popular: a favela. Em fins de 1905, uma comissão nomeada pelo governo federal para examinar o problema das habitações populares constatou que as demolições de prédios iam muito além de todas as expectativas, forçando a população a "ter a vida errante dos vagabundos e, o que é pior, a ser tida como tal". O relatório da mesma comissão fazia referência ao Morro da Favela (atual Providência) – "pujante aldeia de casebres e choças, no coração mesmo da capital da República, a dois passos da Grande Avenida" – que emprestaria seu nome ao, até hoje, mais destacado ícone da segregação social no espaço urbano da cidade.

 
O Morro da Favela, como conjunto de habitações miseráveis, surge antes da Reforma Passos, a partir de contingentes de ex-combatentes de Revolta de Canudos que lá se instalaram à falta de outras opções de moradia na cidade, e posteriormente passa a receber grande parte da fatia mais pobre dos deslocados pelas reformas estruturais na cidade.

 
Podemos perceber que apesar de ter sido uma empreitada republicana, planos e sugestões de mudanças estruturais no espaço urbano do Rio de Janeiro, já existiam desde meados do século XIX, tendo sido considerados centrais para o desenvolvimento econômico da capital e do país num mundo em profundas mudanças na fase em que se encontrava da revolução industrial.

 
No entanto, é apenas com o forte ideal positivista republicano, que se atinge massa crítica para dar largada a essa empresa. É preciso portanto entender algumas idéias que flutuavam à época:
  • Que a pobreza não era apenas um fenômeno social no sentido de ser um resultado de uma série de fatores como falta de oportunidades de ascensão econômica e educacional, mas sim uma condição moral.
  • Que a sociedade deveria ter um caminho ascendente em direção ao progresso, pautado por uma determinada ordem e racionalidade, em virtudes morais e também científicas e que existiriam sim pessoas em graus inadequados de evolução mental, psíquica e moral para esta sociedade.
  • A organização das cidades deveria refletir a organização e desenvolvimento sociais desejados e ser liderados pelas elites preparadas para comandar esse processo civilizador
Importante lembrar que àquela época, em muitos países o pensamento racialista vicejava a pleno, e no Brasil, o incentivo à vinda de mão de obra de origem européia não apenas visava suprir a demanda de trabalhadores no campo, mas também cumpria a função de branquear a população e trazer uma possibilidade de maior agregação de valores culturais apreciados. No entanto é preciso manter em mente que nós não tivemos uma legislação que apoiasse discriminações baseadas em cor da pele ou raça, nem mesmo do período escravagista, não sendo um país institucionalmente contra a miscigenação, sendo o escravo antes de tudo uma condição jurídica e social adquirida com a venda e o berço e assim, uma condição jurídica, e não intrínseca à cor da pele ou raça ou etnia.

É interessante observar que as autoridades não se preocuparam com o destino das parcelas mais carentes da população, responsabilizando-as por seu próprio sustento e custos de deslocação, não promovendo alternativas viáveis de moradia e se eximindo de qualquer responsabilidade quanto ao seu destino.

 A reforma da capital constituiu, sem dúvida, uma ruptura no processo de urbanização do Rio de Janeiro, um ponto de inflexão no qual a "cidade colonial" cedeu lugar, de forma definitiva à "cidade burguesa", moderna, do século XX, que tinha como parâmetros as metrópoles européias. Em novembro de 1906, quando Rodrigues Alves Passou a faixa presidencial a Afonso Pena, o Rio – remodelado e saneado – já era apresentado como "a cidade mais linda do mundo", a "cidade maravilhosa".


Enquanto as comissões federais supervisionavam as obras do porto e da avenida Central, a prefeitura da capital executava o Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Cargo de confiança do presidente da República, a prefeitura da capital havia sido entregue, em 30 de dezembro de 1902, a Francisco Pereira Passos, engenheiro de origem aristocrática, com longa experiência em obras públicas, que estudara em Paris na época das reformas promovidas pelo barão de Haussmann. Considere-se que a cidade era então o Distrito Federal, e seu governo não era decidido por eleições mas um cargo designado por outorga presidencial.

Apresentando-se acima das questões políticas, Pereira Passos aceitou o cargo – e a incumbência de reformar a cidade – sob a condição de modificar a legislação vigente e manter a Câmara Municipal fechada, pelo menos, nos seis primeiros meses da sua gestão, pois acreditava que diversos problemas seriam resolvidos se os intendentes não interferissem. As obras não deveriam sofrer obstáculos da vereança.

Dispondo de plenos poderes para modificar a fisionomia de uma cidade marcada por traços coloniais, o novo prefeito elegeu, como eixo de sua intervenção, a remodelação arquitetônica das edificações. Para isso, nas palavras do próprio Passos, as "ruas estreitas, sobrecarregadas de um tráfego intenso, sem ventilação bastante, sem árvores purificadoras e ladeadas de prédios anti-higiênicos" deveriam dar lugar a "vias de comunicação duplas e arejadas". As avenidas tornaram-se, então, o principal instrumento da remodelação da cidade, atendendo a dois objetivos: a circulação urbana e a transformação das formas sociais de ocupação dos espaços abertos pelas novas artérias.  Algumas áreas da cidade ainda podem ser encontradas com resquícios anteriores à Reforma Passos, dentre eles é possível destacar o Morro da Conceição e outras áreas no entorno no Morro da Providência, antigo morro da favela.

Com a abertura de novas avenidas, a Prefeitura buscou desafogar o intenso tráfego existente entre o centro e os novos bairros da zona sul, bem como entre estes e os bairros das zonas norte e oeste. No centro da cidade, cerca de vinte vias foram alargadas - entre as quais a Treze de Maio, a Carioca, a Assembléia, a Uruguaiana - e outras foram abertas, como os eixos das avenidas Mem de Sá e Salvador de Sá. Alguns pontos nodais foram modificados, especialmente o largo da Carioca, que foi ampliado.

Mas a questão da circulação urbana não se restringia à estrutura física da cidade. Envolvia também os meios de transporte considerados incompatíveis com o tráfego urbano. Expressão dessa contradição foi a luta persistente movida pelas empresas de bondes, sobretudo quando se eletrificaram, contra os veículos de carga puxados por homens ou animais que se deslocavam por sobre os seus trilhos. Nas ruas estreitas e congestionadas do centro, o bonde – e logo os primeiros automóveis – tinham de ajustar seu ritmo ao passo do "burro-sem-rabo" (expressão até hoje usada na cidade), das carroças e dos "cargueiros". A modernização da estrutura de serviços públicos (em sua maioria prestados por empresas estrangeiras) foi igualmente facilitada pelo alargamento da malha viária, que promoveu a reorganização das diversas redes subterrâneas (gás, esgoto e água) e aéreas (telegrafia e telefonia), e previu a iminente instalação dos postes de iluminação elétrica pública.

Ao mesmo tempo em que promovia a abertura de artérias, a Prefeitura regulamentava o transporte de cargas, alterava as dimensões dos veículos e exigia a modificação dos aros das rodas para impedir que fendessem as ruas, além de proibir a tração animal na zona urbana.

Depois falarei das novas posturas municipais que tinham o objetivo de "civilizar" a cidade e que afetavam não apenas a parcela pobre, mas também os remediados e a nascente classe média, ainda habituada aos modos "coloniais" e nada parisienses idealizados pela nova administração.

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