quinta-feira, 22 de abril de 2010

Brasil Atlântico e Rio, seu porto negreiro.

A história do Brasil e principalmente a do Rio de Janeiro, ouso dizer, está inexoravelmente ligada ao trato negreiro e ao instituto da escravidão. Será essa u´a marca tão vergonhosa como julgou Rui Barbosa ao destruir arquivos que seriam hoje valiosos para reconstituir a história econômica e institucional desse nosso traço? Particularmente eu acredito que parte de fazer as pazes com o passado é reconhecer as marcas dele naquilo que somos hoje, é ver o nosso processo de construção como um contínuo acerca do qual, dada a longa perspectiva, julgamentos morais deixam de fazer sentido uma vez que moral e ética mudam ao longo dos séculos. Podemos sim, afirmar gostar ou não, e isso é algo que nos é dado como a qualquer indivíduo fruto de seu tempo e sua sociedade, mas daí a tecer culpas em uma geração pelo que não constituía para a anterior absolutamente delito algum é um salto enorme.

Querendo ou não, precisamos reconhecer que o trato negreiro nos moldou, em coisas que avaliamos como construtivas de acordo com o estado atual de critérios, mas também em coisas simplesmente íntimas e factuais como a própria língua, modo de nos enxergar diante de outros latino americanos, nossa visão de raça (que desde o governo FHC e nessa era Lulla vem sendo americanizada polarizando e racializando discursos), e assim por diante.

Dentre livros interessantes que, mesmo sem lidar com a questão carioca, terminam por falar muito da nossa cidade está O Trato dos Viventes, de Luís Felipe de Alencastro, que é muito bem escrito, dinâmico e agradável mesmo de ler sem perda de profundidade acadêmica.  Faço um breve resumo de alguns capítulos para dar um gostinho da "trama" e comento ao final.

“Trato dos Viventes” versa a formação do Brasil no Atlântico Sul como parte integrante de um sistema comercial plenamente integrado à economia-mundo, no qual a colônia portuguesa sul-americana seria uma unidade complementar vinculada necessariamente à colônia africana, principalmente Angola, durante os séculos XVI e XVII (posteriormente as levas de escravos ainda viriam desta área, porém boa parte seria trazida também da Costa dos Escravos, atual Benin – Gana).


A postura de análise de Alencastro é econômica e ele se aproxima do tema pelo viés de sistema-mundo, ou economia-mundo, do qual é teórico Imannuel Wallerstein. Citado também é Amaral Lapa, que utiliza a mesma vertente na análise econômica da história, e mesmo que não citado, é de se imaginar forte contribuição de Giovanni Arrighi.

Uma das questões do império português ao final do século dos descobrimentos era como assegurar o controle dos nativos e do excedente econômicos das conquistas, integrando os colonos, ou gente remota ao aparelho institucional reinol. Para isso seria, nas palavras de Alencastro, preciso “colonizar os colonos”, isto é, capturá-los nas malhas metropolitanas. Esta “captura” teve matizes diferentes em diferentes partes das possessões portuguesas: Goa, Conchim, Moçambique, Angola e Brasil.

O domínio colonial em Angola se equilibra entre o poder jesuíta e dos capitães – donos de Capitanias similares as existentes no Brasil, que arrecadam tributos dos Sobas, chefes nativos, que lhes são avassalados. A troca de poder destes para a coroa portuguesa e negociantes reinóis coincide com o incremento do intercâmbio marítimo com a colônia americana, que necessita de escravos para sua produção.

O controle espanhol se dá mais sobre a circulação das mercadorias (produtos). O trato de escravos não se adaptava às restrições deste tipo de comércio. Madri então estabelece os Asientos, subempreitando o tráfico negreiro aos genoveses e em seguida aos portugueses.

Para Luanda seguem mercadorias de escambo, e para o Brasil e colônias americanas escravos como fatores de produção ou mercadorias de ganho, estabelecendo verdadeiro comércio bilateral, vez que mercadorias vivas não suportariam o transbordo em Lisboa.

O trato negreiro extrapola o comércio para moldar a economia, a demografia, a sociedade e a política da América Portuguesa, numa perspectiva aterritorial, a partir do atlântico.

Os ganhos fiscais sobrepõem-se aos ganhos econômicos da escravidão. Para a corôa o trato negreiro representa arrecadação tributária, enquanto que para o comprador de escravos, representa necessária mão de obra para uma imensa empresa  colonial.

Ao longo de uma evolução iniciada em meados do século XIV, o trato lusitano se desenvolve na periferia da economia metropolitana e das trocas africanas. Em seguida o negócio se apresenta como uma fonte de receita para a Coroa e reponde à demanda escravista de outras regiões européias. Por fim, os africanos são usados para consolidar a produção ultramarina.

A escravização do africano seria facilitada pela existência de pré-condições geográficas e históricas: sociedades que conheciam o valor mercantil do escravo, que teriam a escravidão como prática, facilidades de acesso. Onde inexistiam tais pré-condições o encadeamento do trato se revela problemático.

Duas mercadorias com impacto direto na produção mercantil de escravos: cavalos e armas de fogo – utilização na captura e no escambo com aliados nas disputas tribais.

A justificação evangélica do trato negreiro seria o resgate de almas da África (território de eleição do demônio), salvas do canibalismo e das guerras intertribais. Entretanto tanto a evagelização, como as empreitadas militares como a ocupação colonial branca na África Ocidental, esbarravam em problemas de diversas naturezas, dentre as quais uma das mais graves estava a Primeira doença, ou as febres que acometiam os estrangeiros. O quadro epidemiológico apresentado pela região era constituído pó febre amarela, tipos letais de malária, varíola, varicela, dentre outras doenças que ceifavam a vida de estrangeiros e mesmo de negros vindos de outras partes do continente.

O tráfico negreiro entre o continente africano e americano se viam facilitados por uma regularidade atmosférica e marítima de navegação leste-oeste chamados African slave trade winds, o anticiclone de capricórnio. Isto tornava mais fácil ir buscar escravos na África do que transportá-los ao longo da própria costa brasileira, no caso do norte do Brasil (Maranhão-Grão-Pará), e mesmo entre o eixo Salvador-Rio de Janeiro.

São Tomé se apresenta como laboratório da experiência portuguesa de colonização no trato de escravos, porém um levante de negros escravos e proprietários mulatos, exacerba a disputa racial e fissuras na empreitada escravista, que viriam selar a empresa colonial na américa portuguesa. Evidencia-se a importância dessa primeira sociedade colonial formada pelos enclaves ibero-africanos nas Canárias, Cabo Verde, na Madeira, nos Açores e em São Tomé - na adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo de técnicas portuguesas e luso-africanas desenvolvidas em larga escala na América portuguesa. São Tomé se firma como um entreposto comercial importante no comércio atlântico, junto com Luanda e Benguela, drenando o interior da áfrica ocidental de escravos como fatores de produção para o comércio ultramarino, estes mesmos um produto deste comércio.

Nesta época, mais do que uma conquista focalizada no domínio de terras e minerais, a colonização de Angola caracterizou-se por uma caça de homens imbricada no mercado mundial. No entanto, essa caça era feita por africanos no contexto de suas lutas internas, na qual o elemento europeu se encaixa como consumidor do excedente humano produzido e ator/parceiro na política continental.

O índio não escravizável
A organização social dos tupis, aruaques, caribes e jês permanecia avessa à troca extensiva de escravos. Isto eliminava das pré-condições necessárias ao estabelecimento do trato escravista. Onde se quisesse transformar indígenas em fornecedores de escravos, carecia transformar sociedades coletoras e caçadoras em sociedades preadoras de homens.

Formas de apropriação dos indígenas: a) resgates – troca de mercadorias por índios prisioneiros de outros índios; b)cativeiros – índios apresados em guerras justas consentidas e determinadas pelas autoridades régias por tempo limitado e contra certas etnias; c) descimentos – deslocamento forçado dos índios para as proximidades dos enclaves europeus e neste caso o trabalho era assalariado e recolhido pelos administradores dos aldeamentos, a sj.

Alencastro destaca os seguintes fatores que concorrem para limitar o cativeiro indígena: a dificuldade de colocar as sociedades indígenas a colaborar ativamente no trato de escravos; a opção da igreja portuguesa pela evangelização da população nativa que se tornava tanto força de trabalho das missões que lhes administrava os ganhos como facilitava a manobra de poder; o indígena como limitante da ameaça interna que representava a massa de escravos da guiné e que assim os circunscrevia aos espaços colonizados pela produção escravista (território dominado pelo senhoriato); e a fragilidade epidemiológica dos indígenas até os descobrimentos não expostos às correntes epidêmicas que já corriam o mundo ao longo das rotas comerciais; dificuldade de comércio entre-capitanias facilitava o comércio entre as margens do atlântico, seja pela maior viabilidade de navegação, de trocas de mercadorias (mercado, circulação monetária e crédito), facilidades fiscais, entre outros exaustivamente declinados pelo autor. De fato o autor abdica de qualquer determinismo científico, para adotar uma multicausalidade, e aponta assim a inviabilidade estrutural da exploração da escravidão indígena, privilegiando a complementariedade no trato com Angola.

Este não uso de mão de obra indígena será menos freqüente no Grão-Pará e Amazonas, alavancados tardiamente para o eixo do atlântico sul.

O Trato dos Viventes oferece contribuições interessantes sob a perspectiva da saúde: lembra que os Descobrimentos completam uma corrente de “unificação microbiana do mundo”. Populações foram ceifadas por doenças exógenas à suas regiões. Observa Alencastro que o período desde a captura até a chegada no porto de destino atua como uma espécie de seleção dos mais aptos, inclusive, senão principalmente, sob o aspecto sanitário. A medicina no trato comercial e nas colônias não costumava ser exercida apenas por doutores, isto é, por pessoas com instrução formada adquirida na metrópole e com autorização para a prática, mas também por empíricos, pessoas que se apropriavam dos conhecimentos dos povos locais e os aplicavam no tratamento das moléstias. Conflitos existiam entre essas duas espécies, sendo que a primeira estava habitualmente encarregada de funções avalizadas pelo poder real. Porém o empírico estava mais próximo das necessidades da população e da manutenção da saúde do cativo. A medicina jesuítica empregava medicamentos aprendidos dos povos indígenas combinandos aos métodos de diagnóstico clássicos.

O texto descreve o processo de dessocialização do escravo, no qual ele é retirado de sua sociedade e colocado em outra, sendo sempre um estrangeiro, onde não domina língua e costumes, e onde é ao mesmo tempo despersonalizado, isto é, tornado objeto de comércio, mercadoria-meio, fator de produção. Ressalta também a maior facilidade financeira de compra de escravos para reposição do que a reprodução de escravos no ambiente escravista americanos. Ainda que a produtividade do escravo seja constante, a produção aumenta pelo aumento do número de escravos, e este número pode ser incrementado pelo incremento do tráfico negreiro, assim é um jogo de ganho duplo para a Coroa vinculando os dois lados de suas possessões atlânticas.

O Trato Negreiro, ou  de Viventes, altera dramaticamente a demografia brasileira. Traz enormes contingentes negros feitos de diversos grupos pertencentes a alguns grandes grupos lingüísticos maiores, e nos dois séculos focalizados por Alencastro, se concentram nas etnias bantu, subsaarianas (grupos de idioma ambundo e kimbundo). Isto causou um forte impacto nas relações com os indígenas, alterou as relações de poder na colônia, insulando, por exemplo a província vicentina e a vila de Piratininga, preadoras de índios, que passaram a ser controladas pela Coroa, mediante intervenção fluminense (olhem como as rivalidades Rio/São Paulo vão longe...). As pressões do Trato por mercadorias de escambo intensificaram a produção de mandioca (e farinha), cachaça, tabaco, e outros gêneros, estabelecendo um comércio bilateral com a colônia africana, liderado pelo Rio de Janeiro (que liderou a Reconquista de Angola), e gerou uma forma de viver e fazer comércio voltada para o Atlântico, que não necessariamente incluía a metrópole.

Curioso observar que as palavras de origem africana incorporadas à língua portuguesa mais comuns derivam do kibundo e do ambundo, ou da língua geral negreira, tais como banguela, bamba, ginga, assim como alimentos comuns no sudeste brasileiro foram influenciados pelos hábitos africanos – cuzcuz de milho, mingaus, frutas trazidas pelos brancos no projeto colonial e a idéia de que não a raça, mas a condição de escravo era mais importante do que a cor em si, que é vista na postura da Corte em relação aos Sobas, à ordenação de religiosos negros, aos tratados e alianças com nativos dos dois continentes, etc. O autor descreve o escravo como desentranhado, possuído por despossuído de si mesmo e convertido em mercadoria, e as possibilidade de reprodução social dele, repondo o que sai dessa condição, o próprio sair da escravidão como possibilidade via rebeldia ou de ascensão pela lei e pela mercancia.

De certa maneira, não fossem os escravos, poderíamos ser, quem sabe, um país que falasse o nhéengatu e não o português!

Em outra ocasião podemos ver o escravo como elemento fundamental à civilização do Brasil, antecedendo em muito à colocações de Gilberto Freyre, em um livro chamado Cartas à favor da Escravidão, escrito por José de Alencar (não é o atual vice-presidente, não, tá?)

O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico sul
Luís Felipe de Alencastro – São Paulo: Cia das Letras, 2000


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