terça-feira, 27 de abril de 2010

Língüa, gostosa herança.


A língua é nossa pátria, é o que nos singulariza neste imenso mundo, e se os holandeses e ingleses se referiam aos portugueses como licensiosos e lascivos, é deles - homens que atendiam ao clamor de seu sangue que mistura saudade e paixão -  que herdamos essa maravilha que falamos, e que nesta terra adquiriu contornos tão bonitos.

Quando Portugal se lançou aos mares, sem querer se tornou uma nação de homens atlânticos, homens marinhos e que como a lenda dos botos amazônicos, viam nas terras que encontravam não apenas riquezas a explorar, mas belezas a desfrutar, corpos a conquistar e aos quais misturar o seu sangue, pois se cor não pega, ela passa, numa intensa mistura de tantos matizes quantas são as paixões humanas.

E também assim a língüa portuguesa alcançou o mundo, com luxúria e fervor, se trançando como num beijo com as língüas de tantas terras e tantos povos, se permitindo ser marcada por aqueles que ela marcava, bocas que se chocavam, ora em carícia mansa, ora em forte imposição de gostos e paixões. A língüa portuguesa lambeu as praias brasileiras e as costas africanas, correu os rios e as matas e se impregnou de sabores e delícias que nunca mais deixou sair de si, ganhou ares e sotaques e no Brasil se fez velha criança, prenhe de cadências e malícias, de andares e movimentos graciosos como os da capoeira. Língüa genésica, língua macho e fêmea na cama dos tempos.

Hoje me dou o prazer de celebrar essa língua na qual expresso a minha individualidade, o meu ser e estar no mundo, o meu sentir e amar. Minha língua é minha pátria, minha terra é onde lanço as raízes do meu viver. Amemos e valorizemos como pudermos essa deliciosa herança.



segunda-feira, 26 de abril de 2010

Reforma Passos ou como mudar a face e esquecer o traseiro

No início do século XX, o Rio de Janeiro enfrentava graves problemas sociais, decorrentes, em larga medida, de seu crescimento rápido e desordenado.

 
Ao final do século XIX, com o declínio do trabalho escravo, a cidade passara a receber grandes contingentes de imigrantes europeus e de ex-escravos, atraídos pelas oportunidades que ali se abriam ao trabalho assalariado. É importante entender que a cidade já contava com uma grande população de escravos, escravos libertos e população de várias cores  e origens, livre e pobre, desempenhando as mais variadas profissões pelas ruas da cidade. Ao contingente já existente acrescentou-se a massa de pessoas que resultou do êxodo de escravos libertos das fazendas, que viram na cidade um modo de vida diferente daquele que haviam vivido até então. Por esta e outras razões,  entre 1872 e 1890, a população da cidade do Rio de Janeiro duplicou, passando de 274 mil para 522 mil habitantes.

 
O incremento populacional e, particularmente, o aumento da pobreza agravaram a crise habitacional, traço constante da vida urbana no Rio desde meados do século XIX. O epicentro dessa crise era ainda, e cada vez mais, o miolo do Rio – a Cidade Velha e suas adjacências – , onde se multiplicavam as habitações coletivas e onde eclodiam as violentas epidemias de febre amarela, varíola, cólera-morbo que conferiam à cidade fama internacional de porto sujo. As habitações coletivas, os chamados cortiços, eram tidos como grandes focos de problemas de higiene, entendendo esse conceito não apenas como condições precárias de saúde, mas também de dissolução moral. Em cortiços escravos de ganho e pessoas livres conviviam normalmente em condições precárias, freqüentemente sem acesso à agüa limpa, sem ventilação, latrinas suficientes e limpas, entre outros problemas.

 
Não por acaso, os higienistas foram os primeiros a formular um discurso articulado sobre as condições de vida na cidade, propondo intervenções mais ou menos drásticas para restaurar o equilíbrio daquele "organismo" doente.

 
O primeiro plano urbanístico para o Rio de Janeiro foi elaborado entre duas epidemias muito violentas (1873 e 1876), mas uma ação concreta nesse sentido levaria cerca de três décadas para se realizar. Foi a estabilidade político-econômica, a duras penas alcançada no governo Campos Sales (1898-1902), que permitiu ao seu sucessor, Rodrigues Alves, promover, entre 1903 e 1906, o ambicioso programa de renovação urbana da capital. Tratada como questão nacional, a reforma urbana sustentou-se no tripé saneamento – abertura de ruas – embelezamento, tendo por finalidade última atrair capitais estrangeiros para o país. Era preciso sanear a cidade e, para isso, as ruas deveriam ser necessariamente mais largas, criando condições para arejar, ventilar e iluminar melhor os prédios. Ruas mais largas estimulariam igualmente a adoção de um padrão arquitetônico mais digno de uma cidade-capital.

 
A reforma tinha inspiração no higienismo francês e pressupunha tanto o controle das condições sanitárias pelo controle do espaço público, como também o melhor manejo das populações, isto é, conter manifestações populares como as experimentadas nas comunas francesas e em pequenas revoltas populares no Brasil. A abordagem sanitária ainda se apoiava na teoria dos miasmas, isto é, na transmissão de doenças por ares infectos e não por agentes patogênicos e portanto o traçado das ruas e avenidas deveria priorizar grandes corredores de ventilação, incluindo também o desmonte de elementos topográficos, como o Morro do Castelo, que impusessem restrições à circulação de ar pela cidade.

 
As obras de maior vulto - a modernização do porto, a abertura das avenidas Central e do Mangue – e o saneamento foram assumidas pelo governo federal. A demolição do casario do centro antigo, a abertura e o alargamento de diversas ruas e o embelezamento de logradouros públicos foram atribuídos à prefeitura da capital.

 
Apoiada nas idéias de civilização, beleza e regeneração física e moral, a reforma promoveu uma intensa valorização do solo urbano da área central, atingindo como um cataclisma a população de baixa renda que ali se concentrava. Cerca de 1.600 velhos prédios residenciais foram demolidos. Parte considerável da imensa massa atingida pela remodelação permaneceria no centro, em seus arredores, pois, apesar do rápido crescimento da zona norte e dos subúrbios, essas áreas não constituíam alternativa de moradia para os que sobreviviam de biscates ou recebiam diárias irrisórias. Serviam apenas aos que possuíam remuneração estável e suficiente para as despesas de transporte, aquisição de terreno, construção ou aluguel de uma casa. Assim, os subúrbios não correspondem ao deslocamento de parcelas realmente miseráveis da população, mas daquela que tinha condições de se estabelecer, restando a esta parte mais vulnerável da massa deslocada as encostas de morros próximos à cidade em processo de remodelação.

 
Nesse contexto surge no Rio, ao lado das tradicionais habitações coletivas que se disseminaram nas áreas adjacentes ao centro (Saúde, Gamboa e Cidade Nova), uma nova modalidade de habitação popular: a favela. Em fins de 1905, uma comissão nomeada pelo governo federal para examinar o problema das habitações populares constatou que as demolições de prédios iam muito além de todas as expectativas, forçando a população a "ter a vida errante dos vagabundos e, o que é pior, a ser tida como tal". O relatório da mesma comissão fazia referência ao Morro da Favela (atual Providência) – "pujante aldeia de casebres e choças, no coração mesmo da capital da República, a dois passos da Grande Avenida" – que emprestaria seu nome ao, até hoje, mais destacado ícone da segregação social no espaço urbano da cidade.

 
O Morro da Favela, como conjunto de habitações miseráveis, surge antes da Reforma Passos, a partir de contingentes de ex-combatentes de Revolta de Canudos que lá se instalaram à falta de outras opções de moradia na cidade, e posteriormente passa a receber grande parte da fatia mais pobre dos deslocados pelas reformas estruturais na cidade.

 
Podemos perceber que apesar de ter sido uma empreitada republicana, planos e sugestões de mudanças estruturais no espaço urbano do Rio de Janeiro, já existiam desde meados do século XIX, tendo sido considerados centrais para o desenvolvimento econômico da capital e do país num mundo em profundas mudanças na fase em que se encontrava da revolução industrial.

 
No entanto, é apenas com o forte ideal positivista republicano, que se atinge massa crítica para dar largada a essa empresa. É preciso portanto entender algumas idéias que flutuavam à época:
  • Que a pobreza não era apenas um fenômeno social no sentido de ser um resultado de uma série de fatores como falta de oportunidades de ascensão econômica e educacional, mas sim uma condição moral.
  • Que a sociedade deveria ter um caminho ascendente em direção ao progresso, pautado por uma determinada ordem e racionalidade, em virtudes morais e também científicas e que existiriam sim pessoas em graus inadequados de evolução mental, psíquica e moral para esta sociedade.
  • A organização das cidades deveria refletir a organização e desenvolvimento sociais desejados e ser liderados pelas elites preparadas para comandar esse processo civilizador
Importante lembrar que àquela época, em muitos países o pensamento racialista vicejava a pleno, e no Brasil, o incentivo à vinda de mão de obra de origem européia não apenas visava suprir a demanda de trabalhadores no campo, mas também cumpria a função de branquear a população e trazer uma possibilidade de maior agregação de valores culturais apreciados. No entanto é preciso manter em mente que nós não tivemos uma legislação que apoiasse discriminações baseadas em cor da pele ou raça, nem mesmo do período escravagista, não sendo um país institucionalmente contra a miscigenação, sendo o escravo antes de tudo uma condição jurídica e social adquirida com a venda e o berço e assim, uma condição jurídica, e não intrínseca à cor da pele ou raça ou etnia.

É interessante observar que as autoridades não se preocuparam com o destino das parcelas mais carentes da população, responsabilizando-as por seu próprio sustento e custos de deslocação, não promovendo alternativas viáveis de moradia e se eximindo de qualquer responsabilidade quanto ao seu destino.

 A reforma da capital constituiu, sem dúvida, uma ruptura no processo de urbanização do Rio de Janeiro, um ponto de inflexão no qual a "cidade colonial" cedeu lugar, de forma definitiva à "cidade burguesa", moderna, do século XX, que tinha como parâmetros as metrópoles européias. Em novembro de 1906, quando Rodrigues Alves Passou a faixa presidencial a Afonso Pena, o Rio – remodelado e saneado – já era apresentado como "a cidade mais linda do mundo", a "cidade maravilhosa".


Enquanto as comissões federais supervisionavam as obras do porto e da avenida Central, a prefeitura da capital executava o Plano de Melhoramentos da Cidade do Rio de Janeiro. Cargo de confiança do presidente da República, a prefeitura da capital havia sido entregue, em 30 de dezembro de 1902, a Francisco Pereira Passos, engenheiro de origem aristocrática, com longa experiência em obras públicas, que estudara em Paris na época das reformas promovidas pelo barão de Haussmann. Considere-se que a cidade era então o Distrito Federal, e seu governo não era decidido por eleições mas um cargo designado por outorga presidencial.

Apresentando-se acima das questões políticas, Pereira Passos aceitou o cargo – e a incumbência de reformar a cidade – sob a condição de modificar a legislação vigente e manter a Câmara Municipal fechada, pelo menos, nos seis primeiros meses da sua gestão, pois acreditava que diversos problemas seriam resolvidos se os intendentes não interferissem. As obras não deveriam sofrer obstáculos da vereança.

Dispondo de plenos poderes para modificar a fisionomia de uma cidade marcada por traços coloniais, o novo prefeito elegeu, como eixo de sua intervenção, a remodelação arquitetônica das edificações. Para isso, nas palavras do próprio Passos, as "ruas estreitas, sobrecarregadas de um tráfego intenso, sem ventilação bastante, sem árvores purificadoras e ladeadas de prédios anti-higiênicos" deveriam dar lugar a "vias de comunicação duplas e arejadas". As avenidas tornaram-se, então, o principal instrumento da remodelação da cidade, atendendo a dois objetivos: a circulação urbana e a transformação das formas sociais de ocupação dos espaços abertos pelas novas artérias.  Algumas áreas da cidade ainda podem ser encontradas com resquícios anteriores à Reforma Passos, dentre eles é possível destacar o Morro da Conceição e outras áreas no entorno no Morro da Providência, antigo morro da favela.

Com a abertura de novas avenidas, a Prefeitura buscou desafogar o intenso tráfego existente entre o centro e os novos bairros da zona sul, bem como entre estes e os bairros das zonas norte e oeste. No centro da cidade, cerca de vinte vias foram alargadas - entre as quais a Treze de Maio, a Carioca, a Assembléia, a Uruguaiana - e outras foram abertas, como os eixos das avenidas Mem de Sá e Salvador de Sá. Alguns pontos nodais foram modificados, especialmente o largo da Carioca, que foi ampliado.

Mas a questão da circulação urbana não se restringia à estrutura física da cidade. Envolvia também os meios de transporte considerados incompatíveis com o tráfego urbano. Expressão dessa contradição foi a luta persistente movida pelas empresas de bondes, sobretudo quando se eletrificaram, contra os veículos de carga puxados por homens ou animais que se deslocavam por sobre os seus trilhos. Nas ruas estreitas e congestionadas do centro, o bonde – e logo os primeiros automóveis – tinham de ajustar seu ritmo ao passo do "burro-sem-rabo" (expressão até hoje usada na cidade), das carroças e dos "cargueiros". A modernização da estrutura de serviços públicos (em sua maioria prestados por empresas estrangeiras) foi igualmente facilitada pelo alargamento da malha viária, que promoveu a reorganização das diversas redes subterrâneas (gás, esgoto e água) e aéreas (telegrafia e telefonia), e previu a iminente instalação dos postes de iluminação elétrica pública.

Ao mesmo tempo em que promovia a abertura de artérias, a Prefeitura regulamentava o transporte de cargas, alterava as dimensões dos veículos e exigia a modificação dos aros das rodas para impedir que fendessem as ruas, além de proibir a tração animal na zona urbana.

Depois falarei das novas posturas municipais que tinham o objetivo de "civilizar" a cidade e que afetavam não apenas a parcela pobre, mas também os remediados e a nascente classe média, ainda habituada aos modos "coloniais" e nada parisienses idealizados pela nova administração.

quinta-feira, 22 de abril de 2010

Brasil Atlântico e Rio, seu porto negreiro.

A história do Brasil e principalmente a do Rio de Janeiro, ouso dizer, está inexoravelmente ligada ao trato negreiro e ao instituto da escravidão. Será essa u´a marca tão vergonhosa como julgou Rui Barbosa ao destruir arquivos que seriam hoje valiosos para reconstituir a história econômica e institucional desse nosso traço? Particularmente eu acredito que parte de fazer as pazes com o passado é reconhecer as marcas dele naquilo que somos hoje, é ver o nosso processo de construção como um contínuo acerca do qual, dada a longa perspectiva, julgamentos morais deixam de fazer sentido uma vez que moral e ética mudam ao longo dos séculos. Podemos sim, afirmar gostar ou não, e isso é algo que nos é dado como a qualquer indivíduo fruto de seu tempo e sua sociedade, mas daí a tecer culpas em uma geração pelo que não constituía para a anterior absolutamente delito algum é um salto enorme.

Querendo ou não, precisamos reconhecer que o trato negreiro nos moldou, em coisas que avaliamos como construtivas de acordo com o estado atual de critérios, mas também em coisas simplesmente íntimas e factuais como a própria língua, modo de nos enxergar diante de outros latino americanos, nossa visão de raça (que desde o governo FHC e nessa era Lulla vem sendo americanizada polarizando e racializando discursos), e assim por diante.

Dentre livros interessantes que, mesmo sem lidar com a questão carioca, terminam por falar muito da nossa cidade está O Trato dos Viventes, de Luís Felipe de Alencastro, que é muito bem escrito, dinâmico e agradável mesmo de ler sem perda de profundidade acadêmica.  Faço um breve resumo de alguns capítulos para dar um gostinho da "trama" e comento ao final.

“Trato dos Viventes” versa a formação do Brasil no Atlântico Sul como parte integrante de um sistema comercial plenamente integrado à economia-mundo, no qual a colônia portuguesa sul-americana seria uma unidade complementar vinculada necessariamente à colônia africana, principalmente Angola, durante os séculos XVI e XVII (posteriormente as levas de escravos ainda viriam desta área, porém boa parte seria trazida também da Costa dos Escravos, atual Benin – Gana).


A postura de análise de Alencastro é econômica e ele se aproxima do tema pelo viés de sistema-mundo, ou economia-mundo, do qual é teórico Imannuel Wallerstein. Citado também é Amaral Lapa, que utiliza a mesma vertente na análise econômica da história, e mesmo que não citado, é de se imaginar forte contribuição de Giovanni Arrighi.

Uma das questões do império português ao final do século dos descobrimentos era como assegurar o controle dos nativos e do excedente econômicos das conquistas, integrando os colonos, ou gente remota ao aparelho institucional reinol. Para isso seria, nas palavras de Alencastro, preciso “colonizar os colonos”, isto é, capturá-los nas malhas metropolitanas. Esta “captura” teve matizes diferentes em diferentes partes das possessões portuguesas: Goa, Conchim, Moçambique, Angola e Brasil.

O domínio colonial em Angola se equilibra entre o poder jesuíta e dos capitães – donos de Capitanias similares as existentes no Brasil, que arrecadam tributos dos Sobas, chefes nativos, que lhes são avassalados. A troca de poder destes para a coroa portuguesa e negociantes reinóis coincide com o incremento do intercâmbio marítimo com a colônia americana, que necessita de escravos para sua produção.

O controle espanhol se dá mais sobre a circulação das mercadorias (produtos). O trato de escravos não se adaptava às restrições deste tipo de comércio. Madri então estabelece os Asientos, subempreitando o tráfico negreiro aos genoveses e em seguida aos portugueses.

Para Luanda seguem mercadorias de escambo, e para o Brasil e colônias americanas escravos como fatores de produção ou mercadorias de ganho, estabelecendo verdadeiro comércio bilateral, vez que mercadorias vivas não suportariam o transbordo em Lisboa.

O trato negreiro extrapola o comércio para moldar a economia, a demografia, a sociedade e a política da América Portuguesa, numa perspectiva aterritorial, a partir do atlântico.

Os ganhos fiscais sobrepõem-se aos ganhos econômicos da escravidão. Para a corôa o trato negreiro representa arrecadação tributária, enquanto que para o comprador de escravos, representa necessária mão de obra para uma imensa empresa  colonial.

Ao longo de uma evolução iniciada em meados do século XIV, o trato lusitano se desenvolve na periferia da economia metropolitana e das trocas africanas. Em seguida o negócio se apresenta como uma fonte de receita para a Coroa e reponde à demanda escravista de outras regiões européias. Por fim, os africanos são usados para consolidar a produção ultramarina.

A escravização do africano seria facilitada pela existência de pré-condições geográficas e históricas: sociedades que conheciam o valor mercantil do escravo, que teriam a escravidão como prática, facilidades de acesso. Onde inexistiam tais pré-condições o encadeamento do trato se revela problemático.

Duas mercadorias com impacto direto na produção mercantil de escravos: cavalos e armas de fogo – utilização na captura e no escambo com aliados nas disputas tribais.

A justificação evangélica do trato negreiro seria o resgate de almas da África (território de eleição do demônio), salvas do canibalismo e das guerras intertribais. Entretanto tanto a evagelização, como as empreitadas militares como a ocupação colonial branca na África Ocidental, esbarravam em problemas de diversas naturezas, dentre as quais uma das mais graves estava a Primeira doença, ou as febres que acometiam os estrangeiros. O quadro epidemiológico apresentado pela região era constituído pó febre amarela, tipos letais de malária, varíola, varicela, dentre outras doenças que ceifavam a vida de estrangeiros e mesmo de negros vindos de outras partes do continente.

O tráfico negreiro entre o continente africano e americano se viam facilitados por uma regularidade atmosférica e marítima de navegação leste-oeste chamados African slave trade winds, o anticiclone de capricórnio. Isto tornava mais fácil ir buscar escravos na África do que transportá-los ao longo da própria costa brasileira, no caso do norte do Brasil (Maranhão-Grão-Pará), e mesmo entre o eixo Salvador-Rio de Janeiro.

São Tomé se apresenta como laboratório da experiência portuguesa de colonização no trato de escravos, porém um levante de negros escravos e proprietários mulatos, exacerba a disputa racial e fissuras na empreitada escravista, que viriam selar a empresa colonial na américa portuguesa. Evidencia-se a importância dessa primeira sociedade colonial formada pelos enclaves ibero-africanos nas Canárias, Cabo Verde, na Madeira, nos Açores e em São Tomé - na adaptação prévia aos trópicos e ao escravismo de técnicas portuguesas e luso-africanas desenvolvidas em larga escala na América portuguesa. São Tomé se firma como um entreposto comercial importante no comércio atlântico, junto com Luanda e Benguela, drenando o interior da áfrica ocidental de escravos como fatores de produção para o comércio ultramarino, estes mesmos um produto deste comércio.

Nesta época, mais do que uma conquista focalizada no domínio de terras e minerais, a colonização de Angola caracterizou-se por uma caça de homens imbricada no mercado mundial. No entanto, essa caça era feita por africanos no contexto de suas lutas internas, na qual o elemento europeu se encaixa como consumidor do excedente humano produzido e ator/parceiro na política continental.

O índio não escravizável
A organização social dos tupis, aruaques, caribes e jês permanecia avessa à troca extensiva de escravos. Isto eliminava das pré-condições necessárias ao estabelecimento do trato escravista. Onde se quisesse transformar indígenas em fornecedores de escravos, carecia transformar sociedades coletoras e caçadoras em sociedades preadoras de homens.

Formas de apropriação dos indígenas: a) resgates – troca de mercadorias por índios prisioneiros de outros índios; b)cativeiros – índios apresados em guerras justas consentidas e determinadas pelas autoridades régias por tempo limitado e contra certas etnias; c) descimentos – deslocamento forçado dos índios para as proximidades dos enclaves europeus e neste caso o trabalho era assalariado e recolhido pelos administradores dos aldeamentos, a sj.

Alencastro destaca os seguintes fatores que concorrem para limitar o cativeiro indígena: a dificuldade de colocar as sociedades indígenas a colaborar ativamente no trato de escravos; a opção da igreja portuguesa pela evangelização da população nativa que se tornava tanto força de trabalho das missões que lhes administrava os ganhos como facilitava a manobra de poder; o indígena como limitante da ameaça interna que representava a massa de escravos da guiné e que assim os circunscrevia aos espaços colonizados pela produção escravista (território dominado pelo senhoriato); e a fragilidade epidemiológica dos indígenas até os descobrimentos não expostos às correntes epidêmicas que já corriam o mundo ao longo das rotas comerciais; dificuldade de comércio entre-capitanias facilitava o comércio entre as margens do atlântico, seja pela maior viabilidade de navegação, de trocas de mercadorias (mercado, circulação monetária e crédito), facilidades fiscais, entre outros exaustivamente declinados pelo autor. De fato o autor abdica de qualquer determinismo científico, para adotar uma multicausalidade, e aponta assim a inviabilidade estrutural da exploração da escravidão indígena, privilegiando a complementariedade no trato com Angola.

Este não uso de mão de obra indígena será menos freqüente no Grão-Pará e Amazonas, alavancados tardiamente para o eixo do atlântico sul.

O Trato dos Viventes oferece contribuições interessantes sob a perspectiva da saúde: lembra que os Descobrimentos completam uma corrente de “unificação microbiana do mundo”. Populações foram ceifadas por doenças exógenas à suas regiões. Observa Alencastro que o período desde a captura até a chegada no porto de destino atua como uma espécie de seleção dos mais aptos, inclusive, senão principalmente, sob o aspecto sanitário. A medicina no trato comercial e nas colônias não costumava ser exercida apenas por doutores, isto é, por pessoas com instrução formada adquirida na metrópole e com autorização para a prática, mas também por empíricos, pessoas que se apropriavam dos conhecimentos dos povos locais e os aplicavam no tratamento das moléstias. Conflitos existiam entre essas duas espécies, sendo que a primeira estava habitualmente encarregada de funções avalizadas pelo poder real. Porém o empírico estava mais próximo das necessidades da população e da manutenção da saúde do cativo. A medicina jesuítica empregava medicamentos aprendidos dos povos indígenas combinandos aos métodos de diagnóstico clássicos.

O texto descreve o processo de dessocialização do escravo, no qual ele é retirado de sua sociedade e colocado em outra, sendo sempre um estrangeiro, onde não domina língua e costumes, e onde é ao mesmo tempo despersonalizado, isto é, tornado objeto de comércio, mercadoria-meio, fator de produção. Ressalta também a maior facilidade financeira de compra de escravos para reposição do que a reprodução de escravos no ambiente escravista americanos. Ainda que a produtividade do escravo seja constante, a produção aumenta pelo aumento do número de escravos, e este número pode ser incrementado pelo incremento do tráfico negreiro, assim é um jogo de ganho duplo para a Coroa vinculando os dois lados de suas possessões atlânticas.

O Trato Negreiro, ou  de Viventes, altera dramaticamente a demografia brasileira. Traz enormes contingentes negros feitos de diversos grupos pertencentes a alguns grandes grupos lingüísticos maiores, e nos dois séculos focalizados por Alencastro, se concentram nas etnias bantu, subsaarianas (grupos de idioma ambundo e kimbundo). Isto causou um forte impacto nas relações com os indígenas, alterou as relações de poder na colônia, insulando, por exemplo a província vicentina e a vila de Piratininga, preadoras de índios, que passaram a ser controladas pela Coroa, mediante intervenção fluminense (olhem como as rivalidades Rio/São Paulo vão longe...). As pressões do Trato por mercadorias de escambo intensificaram a produção de mandioca (e farinha), cachaça, tabaco, e outros gêneros, estabelecendo um comércio bilateral com a colônia africana, liderado pelo Rio de Janeiro (que liderou a Reconquista de Angola), e gerou uma forma de viver e fazer comércio voltada para o Atlântico, que não necessariamente incluía a metrópole.

Curioso observar que as palavras de origem africana incorporadas à língua portuguesa mais comuns derivam do kibundo e do ambundo, ou da língua geral negreira, tais como banguela, bamba, ginga, assim como alimentos comuns no sudeste brasileiro foram influenciados pelos hábitos africanos – cuzcuz de milho, mingaus, frutas trazidas pelos brancos no projeto colonial e a idéia de que não a raça, mas a condição de escravo era mais importante do que a cor em si, que é vista na postura da Corte em relação aos Sobas, à ordenação de religiosos negros, aos tratados e alianças com nativos dos dois continentes, etc. O autor descreve o escravo como desentranhado, possuído por despossuído de si mesmo e convertido em mercadoria, e as possibilidade de reprodução social dele, repondo o que sai dessa condição, o próprio sair da escravidão como possibilidade via rebeldia ou de ascensão pela lei e pela mercancia.

De certa maneira, não fossem os escravos, poderíamos ser, quem sabe, um país que falasse o nhéengatu e não o português!

Em outra ocasião podemos ver o escravo como elemento fundamental à civilização do Brasil, antecedendo em muito à colocações de Gilberto Freyre, em um livro chamado Cartas à favor da Escravidão, escrito por José de Alencar (não é o atual vice-presidente, não, tá?)

O Trato dos Viventes: formação do Brasil no Atlântico sul
Luís Felipe de Alencastro – São Paulo: Cia das Letras, 2000


quarta-feira, 21 de abril de 2010

Reportagem sobre o Rio Colonial

O Globo Online está com uma reportagem digital muito interessante sobre o Rio de Janeiro colonial. Consiste em um passeio virtual por alguns pontos da cidade, apresentado por um pequeno video explicativo da sua importância histórica e arquitetônica e depois de fotos de seus pontos mais representativos.

Como hoje é aniversário de Brasília e eu vi no canal Futura uma apresentadora dizer que nenhum brasileiro questionaria a novacap como a escolha natural para o papel de centro político e administrativo do país, eu achei ótima essa iniciativa do O Globo, jornal carioca como eu.

Brasília é uma cidade projetada atendendo a ditames que estão presentes desde a primeira constituição republicana de 1891. Seus efeitos sobre o país foram dois, dos quais um eu não tenho muita certeza:
  1. Auxiliar a integrar a região centro-oeste e parte da região norte ao país, até então com desenvolvimento econômico fortemente focado no litoral. Não sei se foi a capital responsável por um impulso ao desenvolvimento econômico, já que não há forte ligação econômica de consumo entre o DF e seu entorno, mas sim dessas regiões com os polos de consumo do resto do país, já que há grande agroindústria na região.
  2. Isolar as chefias dos poderes do Estado da pressão popular, fortemente exercida no Rio de Janeiro, o qual é próximo de grandes e populosos Estados-membros que poderiam também exercer pressão e controle popular sobre os governantes e legisladores. Assim, Brasília é uma ilha.

Como projeto, Brasília é um monumento (do Niemeyer, que eu não gosto), e exclui a pobreza do seu interior, isolando-a nas suas periferias. Morar em BSB é caro e dificultoso para pessoas que não dispõem de salários compatíveis com o de servidores públicos federais de nível superior, e, dependendo do Poder a que servem, terão dificuldades em adquirir imóveis no plano piloto. Brasília é um projeto que de início excluiu aqueles que a construíram, os candangos, não havendo espaço nela para o que não pertença à uma utopia excludente.

Os cariocas são órfãos do posto de moradores da Capital da República? Talvez. Argumentar que a cidade não suportaria a estrutura administrativa federal é tolice, pois poderia crescer para abraçar esse desafio como outras capitais mundiais o fizeram. A questão é que uma capital federal próxima de seu povo, como caixa de ressonância cultural, ligada direta e rapidamente aos grandes parques industriais e agrícolas instalados do sul e sudeste, aos portos mais movimentados do país, não estava no projeto de um país que gestava nas entranhas dos seus círculos de poder um longo período de ditadura militar e de luta entre estes e aqueles que lutavam pela ditadura marxista.

Essa pequena matéria do Jornal O Globo serve para nos lembrar que sempre existiu uma outra via: a da liberdade representada por uma cidade que cresceu ao sabor dos séculos e da paixão de seus moradores - tanto ou mais do que da sanha obreira de seus governantes - tendo sido filha de uma impressionante empresa comercial que nos atirou ao Atlântico de tal forma que somos um povo Atlântico mais do que Latino Americano (e nessa atlanticidade incluo até os matogrossenses cujos produtos se vertem pelas estradas e rios até o mar), uma cidade de oportunidades de escrever vidas e histórias em liberdade. Somos a muy leal e heroica cidade de São Sebastião do Rio de Janeiro. Se hoje nos acusam de estarmos no caos, entendam que pode ser exatamente daqui que sairá a libertação.

http://oglobo.globo.com/economia/morarbem/info/rio_colonial/default.asp