Minha família não está no Rio há muitas gerações, entretanto eu nasci aqui e me sinto profundamente carioca, daquelas bem suburbanas, e digo mais: mesmo aqueles criados fora, ainda assim levarão a marca desta cidade dentro deles.
Meus avós maternos vieram da Bahia e de Sergipe no início dos anos 50. Não vieram como tantos imigrantes nordestinos que inundaram São Paulo, apenas à procura de emprego e de alguma forma de enviar dinheiro para casa. Meu avô era soteropolitano de boa família e minha avó era de Aracaju. Ela veio fugindo do meu avô com os filhos, ficar na casa da mãe e da irmã mais velha, que era funcionária pública da saúde federal. Meu avô a seguiu e os dois resolveram se estabelecer por aqui, sem a menor intenção de voltar para os respectivos torrões natais. Sem local para morar, sem emprego (pois meu avô deixou tudo na Bahia), sem apoio familiar de qualquer espécie, com três filhos, é possível imaginar a luta deles para recomeçar uma vida nesta terra.
E eles foram bem sucedidos. Minha mãe e meus tios não tem sotaque ou lembrança do nordeste, e nenhuma identificação cultural de verdade. Minha tia caçula nasceu aqui. Eventualmente a parentada lá de cima vinha visitá-los, mas nunca houve um movimento de retorno. Quando criança e mais tarde na minha adolescência, eu perguntei à minha avó se ela não gostaria de voltar à terra dela, e ela me respondeu que a terra dela era aqui, e que depois que alguém via as luzes do Rio de Janeiro, não se encantava por outras luzes, e que ela podia até viajar para ver os irmãos, mas a gente que ela gostava era a do Rio, e daqui ela gostava de tudo. Meu avô, que era soteropolitano, detestava Salvador, e costumava dizer que o Rio deu a ele a oportunidade de ser gente, e que somente os cariocas sabiam receber alguém que quisesse trabalhar e ficar aqui como um dos seus.
Eu aprendi com eles a ver a cidade como um lugar de acolhida.
Meus avós paternos vieram do norte fluminense, de Campos dos Goytacazes e Morro Agudo. Gente que detesta capixaba, não gosta de mineiro e odeia paulista. Região de colonização européia e com vasto resquício de escravaria e de uma sociedade escravagista dada a cultura do café e da cana-de-açúcar. Historicamente minha família foi uma das perdedoras com a abolição da escravatura e com a luta entre as irmãs. Pena... meu avô veio para o Rio com minha avó e moraram em favela. Ele era mestre de obras, e ela era uma lavadeira analfabeta extremamente jovem. Tiveram ao todo 14 filhos, dos quais 8 sobreviveram. Estes 8 – apenas os primeiros eram campistas – estão formados e razoavelmente bem de vida, e meus primos espalhados por esta nossa cidade amada. Ninguém voltou à terra ancestral: todos somos cariocas.
Eu aprendi com meus avós e tios e tias paternos que esta é uma cidade que acredita em quem acredita em si mesmo e não precisa fazer alarde disso.
Eu nasci no bairro do Irajá, em casa mesmo. Fui batizada na Igreja de Nossa Senhora da Penha. Não há nada em mim que coloque as vestes de uma carioca que busque valores emprestados de qualquer outro lugar que não este chão de onde eu brotei, onde eu lancei minhas raízes, onde eu cresci e onde eu hoje frutifico.
Mas há em mim um caudal de heranças que reafirmam que este meu Rio é, na força da sua gente, realmente o aporte de todos os Brasis. Ao olhar outros cariocas eu peço que eles achem dentro de si essa realização e pensem: em que outro lugar do mundo eles poderiam ser mais eles mesmos, mais essencialmente eles, total e francamente eles, com tudo aquilo que não conseguem compreender mas que está pulsante dentro de si, do que neste precioso pedaço de mundo, feito de mar e montanhas?
A multiplicidade do ser carioca precisa ser aceita e exercida, mesmo amada, para que possamos sair dessa encurralada psicanalítica na qual nos encontramos. Estamos numa verdadeira inércia em que tudo parece ir de mal à pior, e não fazemos absolutamente nada. Se soubermos alguma sobre nós mesmos, sobre nossas capacidades, nossas características, poderemos quem sabe acordar e agir.
Este blogue não tem o objetivo de apenas ufanar a cidade do Rio de Janeiro, mas é o meu esforço de me entender como carioca, como cidadã, como alguém que busca valorizar o que sou como habitante desta cidade, deste estado e deste país, e assim enxergar instrumentos de agir sobre a minha realidade de maneira construtiva para mim e para minha comunidade.
Convido a todos que aqui entrarem, que contribuam com suas idéias e experiências, referências, eletrônicas inclusive, e quem sabe esta jornada não seja solitária.
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