Ontem, 13 de maio, comemoramos mais um aniversário da abolição da escravidão no Brasil. Fomos o último país a extinguir o trabalho escravo nas américas, o que não significa que o trabalho forçado institucionalizado não tenha continuado a ocorrer em outros países latino americanos sob outros nomes. Importante se faz observar que a partir de então reduzir uma pessoa à condição análoga a de um escravo se torna crime no Brasil, e mesmo a pena de trabalhos forçados para criminosos não existe no nosso ordenamento jurídico. O trabalho passa a ser a expressão da individualidade do cidadão livre.
É público e notório neste blogue que sou uma pessoa que não compactua de pensamentos racialistas ou etnocentristas aplicados à realidade brasileira. Sem negar a violência do trato negreiro, acredito que os muitos traumas fazem com que até o momento, muito poucos pesquisadores tenham conseguido versar sobre o assunto com pragmatismo e lucidez.
Confesso que demorei muitos anos para compreender o trabalho de Gilberto Freyre e a magnitude do que ele construiu, e destarte as críticas possíveis, uma que não posso mais admitir, é a de que ele negue a brutalidade do trato negreiro ou mesmo o repute mais manso no Brasil. Entretanto, é forçoso admitir que suas colocações sobre a identidade brasileira são muito mais consistentes do que qualquer coisa jamais feita depois dele no sentido diverso, isto é, no sentido da fragmentação do brasileiro em cores e raças e em etnias.
Lamento, mas a terra é de quem a conquista e a mantém e sustenta militar e juridicamente, portanto as terras não pertencem aos índios, pertencem a todos nós, e aos índios na condição de brasileiros. O conceito de Estado exclui essa lenda do bom índio espoliado. Por outro lado, somos um povo que é genéticamente miscigenado a tal ponto, que distribuir identidades pela cor da pele é ridículo. Somos os que somos, e não precisamos escolher: eis a grande herança isabelina!
Nunca tivemos leis anti-miscigenação, somos um povo misturado mais pelo desejo de pobres livres do que de escravos violentados, vide a variada conformação demográfica dos cortiços cariocas! A abolição da escravidão representou a exaustão de um sistema econômico e transição para outro, e enfim uma transição política, no qual expoentes abolicionistas que abraçaram sua cor mais escura, sua ascendência parcialmente negra, se viram traídos por uma república que durante muito tempo procurou embranquecer o país, enamorada de ideais positivistas.
Mas a carne venceu a pena.
Nós somos um país abençoado, sem dúvida. Com tantos autores e personalidades a comemorar! Durante muitos anos da minha infância, eu não sabia que Cruz e Souza, José do Patrocínio, Machado de Assis eram negros e mulatos. Eram traços biográficos pouco enfatizados, esses de matizes de cor. Eu nunca imaginei que o Túnel Engº André Rebouças, fosse batizado em honra a um engenheiro negro. Esses fatos não eram enfatizados. Eram brasileiros, entendem? Não era um negro: era um brasileiro. Eram grandes brasileiros, independente da cor deles. E eu acho isso maravilhoso.
Claro que pessoas do movimento negro me atirarão pedras e paus, mas e daí? A cor da pele não faz com que alguém seja melhor ou pior do que ninguém, que sinta mais ou menos dor, e eles provaram isso com brilhantismo! Juliano Moreira, grande psiquiatra, era mulato. E eu só soube disso recentemente. E querem saber de uma coisa? Não faz a menor diferença. O homem era brilhante, era médico, e era o tal.
Sabem que é interessante observar que Lima Barreto não vê cor nesse médico? Vê um médico. Isso é lindo! Pois ele mostrou a cara e a coragem do homem mestiço, o homem brasileiro, contra todos que vêem nele o que há de ruim.
O dia 13 de maio, deveria ser o dia da abolição das fronteiras de raça, cor e etnia. Para mim, deveria ser o dia em que as pessoas se tornassem finalmente cegas para a cor, e que passassem a ver uns aos outros como seres livres, indivíduos dotados de vida autônoma, sentimentos, anseios, desejos, capacidade de amar, de odiar, de fazer e de desfazer ou deixar de fazer. Que essa mistura danada no nosso sangue simbolize essa liberdade, essa teimosia em não se deixar agarrar e conter.
Acredito que no momento em que deixarmos de olhar com culpa para o passado, sem justificativas ou compensações pelo ontem, mas tentando ajustar o presente com olhos e foco no presente, nós nos entenderemos como um Estado unido e solidário. Eu entendo e amo o meu igual, igual em potencial, naquela centelha humana.
Ora, esta cidade lusitana é também uma cidade africana, talvez mais até do que Salvador! Pois se deixou molhar pelos suores e pelo sangue de tantos povos que aqui deram com os costados que é difícil alguém não chegar e depois de algum tempo não sentar de frente para essas montanhas, ao vento desse mar e não pensar lá no fundinho: é, aqui é meu lar.
Pois bem, ontem eu comemorei em espírito o dia da Abolição da Discriminação de qualquer tipo (inclusive reversa, que também é uma forma de discriminação). E tenho dito!
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