quarta-feira, 22 de dezembro de 2010

Livro do mês: A Alma Encantadora das Ruas

João do Rio em A Alma Encantadora das Ruas (2008) argumentava que a rua molda o homem; assim como a estrada moldou a sociedade, dizia que a rua e a imensa capilaridade de ruas, avenidas e vielas – o corpo urbano – eram a casa de um universo social inteiro que vicejava em múltiplas formas, sendo preciso estar alerta para suas manifestações, flanando por estes espaços, se permitindo ver, ouvir e participar dessas realidades.


Como cronista testemunhou o início do século XX num Rio de Janeiro que desabrochava em tempos republicanos para o que imaginava ser moderno, diante de intensos influxos de imigrantes europeus, novidades tecnológicas, científicas e literárias, mas ao mesmo tempo se sacudia sob peso de sua herança imperial, entre escravos libertos, mestiços, estrutura agrária dominada por grandes latifundiários cafeeiros e novos ricos industrialistas. Um novo país que não sabia exatamente o que era democracia, mas se queria algo entre liberal e conservador.

Nas suas andanças observou as condições de vida dos mais variados estratos sociais, as pequenas profissões que se acotovelavam pelas ruas numa luta incessante pela sobrevivência à margem tantas vezes da ordem ou aproveitando oportunidades surgidas pela falta de ordem. Observou a atuação do poder público e dos seus órgãos e como o morador da cidade, o pequeno morador, lidava com esse Estado.

Flanando pelas ruas, talvez tenha esbarrado com outro célebre escritor e testemunha do mesmo período histórico, Lima Barreto. Este também mulato, também jornalista, só que pobre, roído pelo alcoolismo e pela doença mental que nos deixou um legado literário belíssimo, observou de perto a vida do povo humilde e em seus relatos auto-biográficos, mostrou as condições sociais da população, e o estado de espírito das pessoas durante a Revolta da Vacina perante as autoridades militares (Barreto, 2007). Saúde, ordem, progresso, um novo país.




Os limites da autoridade sobre os corpos, sobre a vida privada, sobre o direito de ir e vir. A identificação de burocracias do Estado com poder de intervenção sobre as vidas, e as estratégias de sobrevivências com essas burocracias, e apesar delas. Saúde dos portos, Vigilância Médica, Vigilância Sanitária, Delegacia de Hygiene...

Presenças constantes na vida da população, verdadeira face da saúde do Estado e no entanto não se podia contar com elas para algo como curar uma febre!

Posturas municipais controlando a salubridade de moradias e zoneamento urbano já no final do século XIX em guerra aberta aos cortiços, regras para a disposição de corpos defuntos, feiras livres, resíduos, águas servidas, manejo em epidemias comuns à época, enfim, a intervenção constante de estruturas estatais no controle e administração do espaço urbano, e produção (Chalhoub,2006; Costa, 1985).

Nas descrições desses autores vemos práticas hoje conhecidas como Vigilância Sanitária espalhadas em todos os lugares, diversos objetos da instituição atual VISA, que àquele tempo eram controladas por órgãos federais ou municipais ou que já eram sujeitos a normatização, enfim, podemos ouvir ecos do que hoje sabemos em alto e bom som ser Vigilância Sanitária.

Ao longo do século XIX e início do XX, diversas normas vão modelando as práticas de Vigilância Sanitária no controle das condições de saúde da população e da produção. Os espaços de atuação vão do campo às cidades onde o poder público melhor estruturado se faz sentir com maior intensidade, em especial nas grandes capitais e em epicentros de atividade comercial como os grandes portos do Rio de Janeiro, Santos e Belém. São pólos onde a urbanização de viés higienista e o combate às epidemias se dá com força. Por estes portos são escoadas as produções de café e de borracha, entram imigrantes de países distantes e o trânsito de divisas e patologias é igualmente intenso. As cidades florescem e a estrutura estatal da República acomoda as heranças imperiais a novos modos filosóficos e conhecimento científico de matriz positivista.

Paralelo ao incentivo ao desenvolvimento econômico, o ideal de uma sociedade limpa de corpo e intelecto, na qual a higiene teria um papel importante rasgou mentalidades, segregou classes, e mudou modos de ver o mundo ou aprofundou diferenças. A legislação refletia essa mudança, e os órgãos surgidos ou herdados e modificados exerciam as funções necessárias.

Do passado ao presente, um olhar no futuro. Literatura como testemunha, leis, instituições, o Estado presente na vida do cidadão controlando corpos e espaços e surge a Vigilância Sanitária como imagem a ser interrogada, o que passo a fazer daqui para adiante.

Mas Joâo do Rio não se prende às questões de saúde. Ele anda pelas ruas, permitindo que a rua o carreguee sempre atrás de um personagem interessante, de pequenas histórias as quais, ligadas na imensa rede da sociedade fazem uma verdeira mina de sentidos vir à tona!

As prostitutas, os bandidos, os coletadores de anilhas de charutos e os comerciantes de funerais, as casas de ópio, os presépios (daonde a expressão presepeiro deriva...), enfim, personagens que habitam a cidade e que são visíveis a qualquer um que se dispuser a parar, olhar, ouvir, conversar. O Rio é uma cidade que vive na Rua e onde as pessoas parecem ter especial carinho pelo espaço comum, não num sentido de preservá-lo intocado, mas sim de se apropriar dele, modificá-lo, fazer dele mais do que uma extensão do lar, e talvez mesmo um outro âmbito de convivência comum, com regras próprias e até mitologia! Nas ruas o carioca tende a se sentir feliz, à vontade, mais falador.

Nas ruas a pessoa que nasce no Rio de Janeiro se constitui verdadeiramente carioca.

Nenhum comentário: